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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Razão, racionalidade, racionalismo

via perspectivas de O. Braga em 18/09/10

1 Hoje é vulgar ouvirmos dizer que é preciso ter uma “mente aberta”. Porém, normalmente o que se quer dizer com “mente aberta” é sinónimo de ausência de espírito crítico, e sem um espírito crítico a mente fecha-se no “dogma da mente aberta”. Mente aberta deve, pelo contrário, significar abertura e predisposição à análise crítica, e não aceitação passiva ou permissividade crítica.
Mais grave ainda é quando, implícita ou explicitamente, nos dizem que ter a “mente aberta” é sinónimo de rejeição da lógica, por um lado, e a imposição quase absoluta da nossa subjectividade em relação ao objectivo e ao concreto, por outro; criamos assim um nosso sistema privado de ideias, desfasado e mesmo divorciado do real (da realidade). A cristalização de cada uma das nossas teorias privadas, fechadas na nossa subjectividade, serve um propósito de dogmatização da cultura por via negativa, que leva a um totalitarismo político através da eliminação da intersubjectividade e da objectividade (atomização da sociedade).
A primeira coisa que as ideologias políticas totalitárias têm que fazer é eliminar o espírito crítico em circulação na sociedade, convencendo os cidadãos de que possuir um espírito critico é sinónimo absoluto da aceitação passiva de um determinado sistema de ideias diabolizado pela ideologia, ou uma determinada mundividência. Criou-se, pois, o “dogma da mente aberta” que se fecha em relação à realidade. Ter uma “mente aberta” passou a ser aceitar sem criticar.

2 A realidade é indefinível — não podemos definir a realidade. Apenas podemos experienciar a realidade, ter experiência dela, experimentá-la. Podemos tentar descrever partes da realidade, que é o que a razão humana faz — e, concomitantemente a verdadeira ciência —, mas não podemos explicar os fundamentos da realidade, em parte ou no todo. Portanto, qualquer teoria que pretenda reduzir a realidade a uma parte transforma-se em um sistema ideológico dogmático que serve propósitos de alienação humana, e contribui para um totalitarismo ideológico e político.
3 Quando falamos em razão, normalmente falamos exclusivamente em razão humana, como se não fosse possível a existência ou a concepção de razão sem o Homem. Parte-se, assim, do princípio de que antes do Homem existir na Terra, não havia razão no universo; é a ideia de que foi o Homem que criou a razão, e a razão é somente e apenas um atributo humano, como se toda a realidade extra-humana fosse irracional, e apenas existisse razão na espécie humana — e aqui começamos a notar a diferença entre a razão ou racionalidade, por um lado, e racionalização e racionalismo, por outro.
Este erro de concepção da razão — segundo o qual a razão é exclusivamente humana e só apareceu com o Homem — é partilhado pelas mentes mais brilhantes do presente e do passado, e leva a uma espécie de solipsismo da razão que é a causa de uma série de teorias filosóficas erradas, para além de ser a causa das doenças da razão, como o racionalismo, a deificação da razão e a instrumentalização política da razão.
4 A razão é essencialmente baseada na lógica que existe independentemente da existência humana. Antes do Homem surgir na Terra, a lógica já existia, e existiu pelo menos a partir do primeiro segundo após o Big Bang. Porém, não podemos dizer, com toda a certeza, que a lógica que o Homem pressente, aplica e utiliza, é toda a lógica existente no universo — e eventualmente para além deste. Podemos e devemos, neste sentido, falar em lógica humana no sentido da lógica percebida pelo ser humano, assim como podemos falar em razão humana como sendo a razão inerente à condição humana.
5 A razão humana pode ser definida como sendo a relação entre as exigências lógicas humanas e os dados provenientes do mundo dos fenómenos e da existência, conforme percebidos pelo Homem. A esta razão humana, chamamos de racionalidade.
6 Se o universo é finito (porque teve um começo) é previsível a sua extinção. Neste sentido, podemos dizer, ad liminem, que não existe nada que seja absolutamente certo no universo e na existência, convicção esta que decorre da própria finitude do universo e da existência.
Porém, é certo que enquanto o universo dura, a razão humana detecta e experimenta alguns princípios primeiros dados como certos e axiomáticos: por exemplo é uma evidência que a soma dos ângulos internos de um qualquer triângulo é sempre de 180 graus; e é uma evidência que “nenhum facto pode ser verdadeiro ou real, ou nenhum juízo pode ser correcto, sem uma razão suficiente” (Leibniz); ou que h2=a2 + b2 quando aplicado a triângulo recto; etc.
Portanto, podemos dizer que existem coisas ou concepções que são certas enquanto durar a existência e o universo. Estas concepções primordiais não são propriamente científicas, no sentido da ciência do Homem : são axiomáticas, isto é, existem independentemente da ciência humana e do Homem.
7 A racionalidade (ou razão humana) produz sistemas coerentes de ideias, a que chamamos de teorias. Segundo o teorema de Gödel (ou Goedel), é impossível a um sistema demonstrar a sua não contradição pelos seus próprios meios.
Por exemplo, se tivermos um computador programado para simular a actividade cerebral, com um software que o submeta a um rigoroso determinismo no respeitante ao seu funcionamento e à interactividade com o exterior, o computador não conseguiria calcular num tempo T o que ele próprio seria num tempo T+1.
O nosso computador só poderia fazer esse cálculo se estivesse ligado a um outro computador de ordem superior, mas este último computador também não se determinaria a si mesmo sem a ajuda de um computador de ordem superior. E assim consecutivamente.
O teorema de Goedel demonstra não só que a filosofia e a ciência não se devem fechar em sistemas que não permitem a sua actualização, mas também o facto de um aparente determinismo poder ser posto em causa por uma visão de ordem superior da realidade.
8 Já vimos (ponto 3 e 4) que existe uma diferença entre a noção de razão humana (racionalidade) e o conceito de razão universal entendida no absoluto do espaço-tempo e mesmo Além-espaço-tempo. Este conceito não é passível de definição (para que se pudesse transformar, assim, em uma noção) porque desconhecemos os contornos do seu conteúdo; apenas o podemos conceber (conceito) por dedução lógica. A razão universal confunde-se com a própria realidade.
Quando Hegel dizia que “o que é real é racional, e o que é racional é real”, esta proposição seria verdadeira — no sentido da lógica — se o racional abarcasse o conceito de razão universal e independente do Homem, e o real fosse entendido como a realidade não passível de definição pelo ser humano. Porém, ainda hoje não se sabe muito bem se Hegel se referia, ou não, à razão estritamente humana.
O racionalismo surge quando um sistema de ideias (teoria) é considerado provado para sempre. A partir daqui, a razão humana divorcia-se da realidade e da experiência humana. Porém, é um erro de determinados filósofos ilustres considerar os primeiros princípios — cf. ponto 6 — como produto de alguma teoria ou sistema de ideias. Os princípios axiomáticos, como a lógica, não são sujeitos a flutuações conceptuais de acordo com as teorias humanas e ao sabor dos tempos; o que aconteceu foi que o Homem construiu, sobre os princípios da lógica e sobre os axiomas universais, as suas teorias e sistemas. Em princípio, desconhecemos se os princípios da lógica humana são totalmente coincidentes com a lógica universal, mas tudo aponta para que assim não aconteça.
9 O racionalismo é a noção segundo a qual a realidade se reduz a um determinado sistema de ideias (ou método de racionalização) — que é sempre parcelar e não apreende nunca a realidade na sua totalidade. O cientismo é a crença segundo a qual o conhecimento científico positivista — e particularmente o das ciências da natureza — é não só a mais alta como mesmo a única forma de conhecimento.
Tal como o racionalismo, a manipulação política da razão e da ciência, e o cientismo, são doenças da razão.

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